Memórias e um poema de Natal
Dos Natais da minha infância guardo o mistério do Menino
Jesus que descia pela chaminé e que vinha colocar nos nossos sapatos deixados em
cima do fogão as prendas que desejávamos durante um ano inteiro! Sempre achei
que os sapatos no fogão era pouco
higiénico, mas como era assunto de
Menino Jesus, lá nos salvaria das doenças…
Bem, aquele Menino Jesus da nossa chaminé de fogão elétrico não
seria muito de fiar pois guardo o desapontamento de uma prenda pedida,
desejada, ansiada ardentemente e que não me foi colocada no sapato num certo Natal: mais um irmão, um boneco a sério para
eu brincar. Estranhamente, só chegou em março… Mas os crescidos garantiram-me que tinha sido uma questão de
atraso e que março era um bom mês para ser natal de uma menina-ai-jesus…
Dos Natais, guardo o pinheiro com o seu odor verdadeiro, a
resina que se nos colava aos dedos e as
bolas de fino vidro que o enfeitaram anos e anos, conservadas em caixas e papel
, mas que por vezes se partiam em mil pedaços. O enfeite do topo, uma estrela prateada era esplendorosa. Rivalizava,
em fascínio, com as pequenas figuras do presépio que incluíam o burrinho e a
vaca, proscritos ultimamente.
Guardo as nuvens de
vapor das grandes panelas que se abriam às travessas do bacalhau com todos e
molho fervido. Guardo o sabor dos filetes de polvo enfeitados com salsa que
antecipavam tudo isso e o odor das rabanadas e mexidos que generosamente denunciavam
quantidades de açúcar e mel (pouco cozido, senão estraga!) que hoje nos fazem
arrepiar mas que continuamos a comer, com remorsos…
O açúcar tão branco e fino que unia as frutas coloridas do
bolo rei fascinava-me e, como toda a gente, eu desejava a prenda embrulhadinha
em papel de seda e temia a fava. Guardo também a lembrança dos apertões do
quebra-nozes nos meus dedos pequeninos, tentando as habilidades dos mais
velhos.
Mas o melhor de tudo era estarmos juntos. Como estávamos
todos os dias, é bem verdade, mais os avós e os tios, que também estavam
connosco tantas vezes, noutros dias do ano… Mas nessa noite jogávamos ao rapa e
aos pinhões. E cantávamos, representávamos, recitávamos poesias. Todos tínhamos
um momento a que não podíamos escapar, de apresentar o nosso “número”, onde nos
sentíamos à prova mas tão acarinhados pelos outros.
O reportório era variado e com alguma exclusividade. Cada um
de nós, os sete irmãos, tinha a sua história, a sua canção, o seu poema. O mãe e o pai também. A
minha irmã, acima de mim, tinha a sorte de dizer a história que eu sempre considerei mais bonita, sensível
e generosa. E que bem ela a contava com os seus olhos e voz tão expressivos. Aquele
poema teria vindo dos livros de escola
primária de minha mãe que o sabia de cor e nos ensinou? Teria sido ensinado
pela professora primária dessa minha
irmã? Para mim, durante tantos anos, foi um poema de “tradição oral”. Só recentemente pesquisei na
internet, para tentar identificar a sua origem. E foi fácil
encontrar, pois então…
Todos os anos continuamos o nosso ritual de Natal. Uns já
partiram, outros se apresentam com os antigos e novos números… Mas este continua a ser o meu preferido. Da
autoria de Adolfo Simões Müller, o poema "A última prenda do Menino Jesus".